quinta-feira, 8 de março de 2012

Sentado em sua cama, Deocífero era um chumaço de algodão. Sentia-se feito da matéria das nuvens. Flutuava na imensidão do Senhor. Na linha da visão, o tudo e o nada eram o mesmo. As casas, o morro, a torre da catedral, a caverna, a cachoeira, tudo era insignificante quando se olhava do infinito.
Lá, no alto, sabia que as tentações do Diabo não podiam alcançar. Ritinha não iria para o Céu.
-Ah, Ritinha!…
Ritinha era uma mulher impura. Sabia que ela o olhava durante as missas, quando se levantava para tomar a hóstia. Sentia aqueles olhos de caxinguelê. Ela o olhava. Sabia disso. Por certo que nunca vira diretamente seu olhar, mas ela o dizia com seu jeito de andar, seu rebolado dizia isso. Às vezes, deitado na cama, Deocífero ouvia a voz da pecadora de Ritinha chamando por seu nome da mesma forma que a ouvira fazê-lo na sorveteria.
Ritinha do vestido de chitão roxo, Ritinha do laço de fita, Ritinha da voz melodiosa.
Enquanto eu corria, sim, eu ia - Arrulhava Ritinha - lhe chamar…
Ainda que belo, o canto de Ritinha era triste. Deocífero sabia que Ritinha cantava para ele, aquela serpente. Víbora transvestida de pomba, trazia uma maçã à boca, mas anunciava como ramo de oliveira. Queria fazê-lo trair a memória de sua mãe, sua querida mãe, a quem fizera uma surda promessa póstuma de nunca amar outra mulher, como a amara.
Havia 27 anos que a mãe partira, seu olhar não era de pena, era de amor, ternura. As vezes que ela o levava para a casa do Padre e confessava seus pecados, a porta entreaberta, conforme eram os pecados, mais alto gritava o Padre, a dor consumia-lhe o corpo, o Padre sofria pelos pecados e a cama que balançava mais forte, o telhado que perdia as telhas, as portas que rangiam, o Padre que gritava, a mãe, os gritos, as lágrimas, as mãos, o Padre que se deixava cair.
A mãe lhe dizia que o Padre tirava o pecado de seu corpo fazendo aquilo e que o líquido que escorria entre suas pernas era santo, era o milagre de Deus feito matéria. Deocífero não entendia o que era pecado, mas o Padre tirava os pecados com frequência. Tirar pecados era extenuante e aquele era um santo homem que se sacrificava para purificar os fiéis. No entanto, nunca vira ninguém mais ir se confessar. Segundo a mãe, as pessoas iam sem ser vistas, por que pecar é feio.
Deocífero se sentia limpo, apesar da dor que o Padre lhe causava ao introduzir o falo divino em si.
Será que Ritinha se confessava?
Deitado no chão, pensava se Ritinha não gostaria de se confessar com ele, deixá-lo derramar a matéria da purificação, o Deus feito líquido.
O amor é o filho caçula da loucura. A carne que se rasga sob as chicotadas, chicotadas geradas por pensamentos que ofenderiam a Santa Mãe.
Deitado no chão pensava, na purificação de Ritinha. Não havia ninguém mais indicado que ele. Ele que trouxera a luz para a mãe dormindo impura. Havia sido purificada pelo Padre sem ter pecado. Fora preenchida com o Santo em noite clarinha de Lua mansa. O telhado fora recolocado, a balança seria equilibrada, o peso do Padre seria contrabalanceado por uma criatura santa. Não podia permitir sua vinda.
A mulher deitada fora consumida pela luz, bem como a casa. Todas purificadas, a mãe se juntara à Mãe de Deus. A mãe gritava, mas não conseguira fugir em sua lentidão parturiente. Na fuga, com o calor, a santa criatura fora parida ali, o primo-líquido escorria pelas pernas da Santa, que gritava. As flamas lambiam suas pernas até que o santo nascera. Mãe e filho, ambos renovados por Hélio.
Deocífero purificaria Ritinha, assim como tinha feito com todas as outras santas.
Iria segui-la pela rua da catedral, iria se aproximar dela no escuro. Nas sombras da noite, espreita o desejo. Quando ele pegasse em seu cabelo, ela iria tentar correr, todas tentavam. O demônio que ali estava iria ser mandado de volta para o Inferno e ela estaria livre. Ela gritaria como todas. Ah, os gritos. Estes acordavam o Deus em si. Este Deus pulsava por libertação e, quando a fusão entre Deus e seu depositário se completava, os sentidos se desvaneciam e seus olhos brilhavam.
Deocífero se transformava em besta divina, a pecadora se debatia e chorava em sua ingratidão. O cheiro de Ritinha entrava por suas narinas. A carne macia, as pernas retesadas, ele sentia.
Penetrava com violência, o Deus libertava-se de suas correntes. O Deus forçava sua saída, seu receptáculo tentava se libertar até o derradeiro momento. Deocífero a levava para casa, separava a mente, a alma e o corpo. A mente pecaminosa de Ritinha iria tomar parte da refeição quando ele devorasse sua alma ainda gotejante, retirada ainda pulsante do peito pecador. Toda a carne deveria ser purificada. O corpo iria ser purificado pelo próprio Sol, representado pelas chamas.
A mente tinha destino especial. Esta seria colocada na parede, tomando lugar junto às demais mentes de pecadoras. Juntas a elas estava o corpo santo do Santo Padre, sua tez estendida pela parede fora retirada com cuidado, ainda que o Padre gritasse por perdão. Um santo homem não precisa de perdão.
Deocífero se sentia próximo do Senhor quando mandava aquelas mulheres para a santidade. Deocífero era o Caronte submetido a Ele. As chicotadas após cada purificação eram afagos jubilosos do Senhor.
Ritinha era de Deus, pertencia a ele. Naquela rua, Ritinha seria mandada de volta.